O Despertar
Era um domingo chuvoso quando começou a tocar uma música que Sara não escutava há anos. Talvez pelo dia cinzento, ela ainda estava na cama, com preguiça e desejando permanecer assim, sentindo o prazer do frio, das cobertas, do travesseiro enquanto se afundava no colchão macio. Mas aquela canção trouxe uma palpitação inesperada, fazendo-a se dar conta de como o coração possui uma vida independente de sua vontade. Tentou controlá-lo para aproveitar um pouco mais aquele momento de solidão escolhida. Em vão. É um músculo teimoso, cheio de complexidades.
Memórias começaram a despertar em sua mente, como se fossem projetadas no teto para onde olhava, preenchendo todo o quarto. Uma volta no tempo... Lembranças de um passado tão distante quanto difícil, uma fase de muitas perdas, quando aquela música a acalentava. Sua letra era um agradecimento a uma pessoa quando tudo estava desmoronando. Sara, apaixonada por romances, acreditava que um príncipe a salvaria, como na canção. Ele mataria o dragão, a tiraria da torre e a levaria para o castelo, onde viveriam felizes para sempre.
De volta ao quarto, estranhou o sorriso em seu rosto e, mais ainda, o coração desacelerando. Por que se acalmaria ao lembrar de dores passadas? Apesar das memórias dolorosas, uma sensação de paz foi tomando conta de seu corpo. Nenhum príncipe a havia salvado. A moça olhou-se no espelho, com o sentimento de vitória de quem havia matado mil dragões e escalado uma enorme torre até encontrar-se livre. Quanta coragem ela teve... Esperar alguém de fora salvá-la era desmerecer seu poder. Não fora necessário.
Sara recordou as vezes em que recebeu um olhar, um abraço, um acolhimento, uma escuta carinhosa e atenta, um amor que despertasse o seu melhor, que a olhasse por inteiro e até a lembrasse de sua força. No entanto, ela via em si sua própria heroína, com uma força interior que a fez renascer e renovar sempre que precisou. Deitou-se novamente na cama. Naquela solidão de domingo, não estava só, mas sim acompanhada de si mesma desde que chegou ao mundo, na dificuldade de aprender a respirar com os próprios pulmões. Assim seria até seu último dia de vida, como um casamento eterno.
Ela riu ao perceber que seu casamento mais duradouro e inquebrável era consigo mesma — na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, ela sempre estaria ao seu próprio lado. Quando aquela música tocou, se agradeceu por ter buscado a felicidade até quando bateu o cansaço. E mais: por ter resgatado o amor-próprio quando ele escapou por alguns momentos. Isso a ajudou a ultrapassar barreiras, superar adversidades, se equilibrar, se conectar com o que lhe faz bem, além de externar e respeitar suas dores até que elas passassem.
Foi grata, portanto. Por se focar no presente, olhar com respeito para o passado e com esperança para o futuro. Por saber se desligar de ciclos que se encerraram para começar novos de peito aberto. Pelo alívio de ser imperfeita, podendo aprender a cada queda. Por buscar se preencher, deixando o outro se tornar uma soma ao seu inteiro, e não uma metade. Enfim, por deixar sempre o coração brilhar, colocando o amor acima de tudo, acreditando no poder dele, independente de qualquer coisa.
Se agradeceu... e foi feliz.
Psicóloga Clínica
CRP 05/35960
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