Dias Sem Sol
Em uma manhã abafada e cinzenta, o despertador tocou. Helena havia dormido, mas não o suficiente para descansar. “Preciso mesmo me levantar?” Os passos apressados de criança no corredor responderam antes que ela decidisse. João, seu filho de sete anos, parecia ter lido seu pensamento. Ela olhou para o lado esquerdo da cama vazio. O marido já saíra para o trabalho.
Levantou-se em silêncio. Preparou o café do pequeno, comeu apenas uma maçã. Enquanto João brincava, transformando o tapete em montanha, ela se deitou no sofá.
A semana tinha sido longa: reuniões sem fim, horas extras, cobranças do chefe por ter saído mais cedo na quarta-feira para buscar o filho, noites em claro devido à febre de João, pediatra, farmácia… e a sensação constante de estar sempre devendo algo ao trabalho, à casa, a si mesma.
Ali, no sofá, respirou fundo. Enfim, uma folga. Pegou o celular, deslizou os dedos pela galeria de fotos até encontrar uma imagem antiga: João, ainda bebê, brincando à beira de uma cachoeira. A luz era suave, o sorriso dele inteiro. E aquela foto... ela quem havia tirado.
Sentiu um aperto no peito.
Um silêncio estranho se fez por dentro.
Não sabia dizer o que era aquilo, mas havia uma saudade que não conseguia nomear. Uma vontade de voltar para algum lugar, ainda sem saber qual. Lembrou da água correndo sobre as pedras, do cheiro das árvores, do sol batendo no rosto, do vento brincando com os cabelos. Tudo aquilo agora parecia longe demais.
Como se não enxergasse mais o mundo com a mesma luz. Como se, dentro dela, o céu estivesse nublado.
Tirou um cochilo leve. Brincou com João. Checou e-mails, mesmo sendo sua folga. Mas algo persistia. Então, escreveu uma mensagem para o marido:
— Amanhã, vamos à cachoeira. Nós três.
Roberto topou. Pareceu animado.
Mas, no sábado, João teve uma recaída.
Em meio aos cuidados com a criança, Helena recebeu uma nova cobrança do chefe: reunião na segunda às oito, pontualidade exigida, “você precisa dar o exemplo”, ele dizia.
E de novo, o aperto. E com ele, a lembrança.
Aquela foto. O instante de luz. A câmera nas mãos. A Helena que existia ali.
Sentou-se no chão do quarto, encostada na cama. Conseguiu entender finalmente aquele aperto. Ou melhor, conseguiu reconhecer o que vinha faltando.
Contou a Roberto, entre suspiros e pausas. Sobre a ausência de si, a saudade que sentia da mulher que tinha sido. Da época em que estudava fotografia, dos trabalhos que fazia, do brilho no olhar quando revelava uma imagem que tinha captado mais do que forma; captado afeto.
Ele escutou, acolheu. A parceria continuava ali.
No fim da tarde, Helena subiu em um banquinho, abriu o armário alto e encontrou a câmera.
Pesada de poeira e memória.
Chorou... Um choro leve.
No domingo, reorganizou seu antigo portfólio. Releu e-mails antigos, procurou cursos, reencontrou nomes.
Combinou de se reunir com uma amiga da época do curso, que agora trabalhava com edição e design. Fizeram planos. Iriam abrir juntas um pequeno estúdio, do jeito delas, com tempo para cuidar dos filhos, da vida, do que importava.
Na segunda, não foi à reunião.
Saiu cedo. A praça do bairro ainda dormia quando ela se sentou no banco de madeira, câmera em mãos. O vento soprou, o sol aqueceu seu rosto, o cheiro das folhas a envolveu como um reencontro.
Ali, finalmente, sentiu o vento, voltou a ver o sol.
Não o do céu. Esse sempre esteve lá.
Mas aquele que, por dentro, há tempos tinha deixado de brilhar.
Sorriu.
Não porque tudo estava resolvido, mas porque agora a paisagem interna começava a se abrir.
Psicóloga Clínica
CRP 05/35960
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