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O Que Fica

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Maria nunca imaginara que, aos 15 anos, precisaria lidar com uma falta como aquela. Como poderia, em um dia, aquele homem tão presente, que iluminava seu entorno, estar ali e, no outro, já não estar mais? Não fazia sentido. Aquele avô que lhe ensinara a “voar com a imaginação” ou a “procurar os pequeninos” pela casa. Pequeninos que ela nunca tinha visto, mas que, por ele ter dito que existiam, ela confiava. Na infância, os buscava em cada canto da sala, do banheiro, da cozinha. Mesmo quando a maturidade a fez deixar de acreditar, ainda os procurava, para que seu avô não notasse que ela havia crescido. Tantas lembranças... - Por que o final me faz lembrar do começo? - perguntou-se Maria, olhando para o gramado daquela casa, onde, poucos dias atrás, vira seu avô pela última vez, regando as flores. Levantou-se e caminhou pelo jardim, seguindo os passos daquele homem que a ensinou a amar as plantas e os bichos. Ajoelhou-se para sentir o perfume da flor preferida de Jaime. Talvez ele tenha ...

Vestindo Papeis

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Lá estava aquele vestido na vitrine por anos. O mesmo que, de tempos em tempos, tiravam do manequim para limpar e recolocavam ali, com cara de novo. Feito de um material diferente, um tipo de papel, sua promessa era ser muito resistente ao tempo e a acidentes. Sua textura fina, quase delicada, contrastava com a rigidez que o tornava apertado ao corpo. Anos atrás, aquele modelo fora recorde de vendas, mas apenas esse único restou. E ficou ali, intacto. Quando alguma possível compradora entrava na loja, os vendedores costumavam dizer: - Olhe esse vestido, que lindo. Vai ficar ótimo em você. – Então, as moças o experimentavam, mas logo desistiam ao perceber que não cabia. Porém, naquele dia em especial, Susana saiu do trabalho determinada a encontrar a roupa perfeita para sua festa de aniversário, que seria naquela noite. Precisava de algo que a fizesse sentir-se poderosa, afinal, era seu dia. Passou por todas as vitrines, sem gostar de nada. Até que, ao chegar naquela loja, bateu os olho...

O Despertar

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Era um domingo chuvoso quando começou a tocar uma música que Sara não escutava há anos. Talvez pelo dia cinzento, ela ainda estava na cama, com preguiça e desejando permanecer assim, sentindo o prazer do frio, das cobertas, do travesseiro enquanto se afundava no colchão macio. Mas aquela canção trouxe uma palpitação inesperada, fazendo-a se dar conta de como o coração possui uma vida independente de sua vontade. Tentou controlá-lo para aproveitar um pouco mais aquele momento de solidão escolhida. Em vão. É um músculo teimoso, cheio de complexidades. Memórias começaram a despertar em sua mente, como se fossem projetadas no teto para onde olhava, preenchendo todo o quarto. Uma volta no tempo... Lembranças de um passado tão distante quanto difícil, uma fase de muitas perdas, quando aquela música a acalentava. Sua letra era um agradecimento a uma pessoa quando tudo estava desmoronando. Sara, apaixonada por romances, acreditava que um príncipe a salvaria, como na canção. Ele mataria o dragã...

Generoso e Narcisa

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Generoso se importava tanto com as outras pessoas que esquecia de si mesmo. Por vezes, sem se dar conta, apagava-se atrás dos olhares e vozes alheias. Dedicava-se aos outros, fugindo das palavras de agradecimento, parecendo não se importar com isso. Afinal, poucas vezes em sua vida fora reconhecido pelo bem que fez, e ele se mostrava confortável nessa posição. No dia em que Narcisa o olhou, o rapaz se encantou imediatamente. Haviam combinado um encontro às cegas. A moça, de postura firme e andar decidido, entrou pela porta, procurando o homem da foto. Localizou-o sentado, brincando com um copo. Generoso levantou-se rapidamente, um pouco tímido. Foi quando descobriu, pela primeira vez, o prazer de ser olhado nos olhos. Quem conhecia Narcisa estranharia esse interesse de se envolver com alguém. Ela, decepcionada com ingratidões passadas, havia decidido olhar apenas para si mesma. Concluiu que nunca se trairia e nunca se negligenciaria: teria o caso de amor perfeito consigo mesma. Portant...

Construindo Caminhos

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Estamos sempre construindo. A vida, muitas vezes, se assemelha a uma obra em andamento: um espaço cheio de poeira e concreto, onde mal conseguimos distinguir o que será uma sala, um quarto ou um refúgio de descanso. Tudo parece confuso, sem forma, e buscamos nos encontrar em meio a contornos que ainda não se revelaram. Mas a construção é feita aos poucos, escolha por escolha. Cada decisão que tomamos é movida pelo desejo e o desejo nasce da falta. Cada escolha é uma tentativa de preencher esse vazio, e ao seguirmos por um caminho, deixamos outros para trás. E assim, a casa começa a ganhar forma. O que antes era apenas um amontoado de desejos e incertezas começa a se organizar, até que, um dia, percebemos que aquele espaço, enfim, é nosso lar. Imperfeito, mas vivo. Construir exige paciência. É no presente que a casa ganha forma. O passado não pode ser mudado, e o futuro é incerto. O agora é o único tempo em que podemos agir, é no presente que o desejo encontra seu espaço para se realiz...